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ID: 2690

Lucas 6.17-26

Auxílio Homilético

17/02/2019

 

Prédica: Lucas 6.17-26
Leituras: Jeremias 17.5-10 e 1 Coríntios 15.12-20
Autoria: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 6º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 17 de fevereiro de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII

Sermão da baixada: igreja “pé no chão”

1. Introdução: Situando...

O conhecido sermão do monte de Mateus tem uma versão diferenciada em Lucas. Nesse, as bem-aventuranças são temperadas com azedos ais, que são necessários para lembrar a igreja de ter os “pés no chão” para caminhar como Cristo entre o povo, compadecendo-se dele e agindo por e com ele. O cenário de uma baixada é simbólico para essa “descida” do discurso teológico para a realidade dos ouvintes. A adesão ou não ao projeto de Deus personificado em Jesus Cristo é que vai situar as pessoas no terreno das bem-aventuranças ou dos ais. Uma relação desse texto com o tempo litúrgico da Epifania é que a partir do discurso e prática de Jesus surge algo novo (Epifania – palavra grega que significa “aparição”). E essa perícope, tão densa em conteúdo, constitui apenas uma introdução ao sermão.

O profeta Jeremias teve que denunciar os graves pecados de Israel. No desespero diante do inimigo (rei Nabucodonosor), Israel não se voltou a Deus, mas buscou auxílio na inteligência e força humanas (rei do Egito). O profeta afirma que maldito é o ser humano que confia nos recursos humanos e bendito é o que confia em Deus. É um discurso semelhante ao do evangelista, que aproxima a fala de Jesus a um discurso profético.

No trecho da carta paulina, o apóstolo destaca o fato de a fé apurar nossa visão sobre a vida, percebendo que o sentido da vida é maior que a própria vida: Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens (15.19). E isso é tão grandioso que vale tanto para transformar nossa vida no agora (dá sentido e motiva a servir) como nos garante um futuro e, com isso, esperança (ressuscitar como Cristo ressuscitou).

2. Exegese: Chegar mais perto

No v. 17 Lucas descreve o cenário no qual Jesus proferiu o de agora em diante denominado “sermão da baixada” – um lugar plano. Jesus está acompanhado de seus discípulos, seguidores e grande multidão. A delimitação “toda a Judeia”, no texto original, também pode ser traduzida por “toda a terra de Israel”. Tiro e Sidom eram cidades que ficavam no litoral norte do mar Mediterrâneo, fora da terra de Israel, e representam que a mensagem do evangelho será anunciada também aos não judeus, como, de fato, acontece no livro de Atos. As multidões vieram (v. 18) com interesse em cura e libertação. O problema é que muitos eram curados e libertos, mas não assumiam compromisso com o reino de Deus.

“Jesus disse” (v. 20): aqui inicia o “sermão da baixada”, que finaliza no v. 49. O sermão do monte (Mt 5 – 7) tem 107 versículos e o da baixada apenas 30. Esses sermões refletem uma compilação de ensinos curtos de Jesus que já circulavam entre os discípulos e que ambos os evangelistas usaram, conforme o público a que se dirigiam e seus estilos pessoais. Lucas não registra um sermão completo como Mateus; os ensinos paralelos de sua narrativa se devem ao hábito de Jesus de repetir os mesmos conceitos em ocasiões diferentes. Podemos observar ainda que no sermão do monte a subida à montanha representa algo espiritual, pois as montanhas eram lugar de encontro com Deus. Quando consideramos que Mateus escreveu principalmente para leitores judeus que haviam se convertido ao cristianismo, não podemos deixar de notar um paralelo entre Jesus e Moisés. Mateus registra o sermão em um monte porque quer retratar Jesus como um novo Moisés, que faz uma nova entrega da lei divina a um novo povo de Deus que está sendo formado: a igreja. A planície, por sua vez, simboliza o mundo onde acontecem os dramas humanos, e representa a “descida” de Deus em Jesus na realidade humana para anunciar sua mensagem. Nesse sentido, é interessante avaliar ainda a perspectiva do terceiro evangelho sinótico: Marcos. Em Marcos 4, podemos falar de um “sermão do lago/mar”, pois com exceção do seu final (Mc 4.35-41), parábolas são o tema dominante desse capítulo. Qual o significado do lago, do mar? Na apocalíptica, o mar é o lugar de onde surgem as forças monstruosas dos impérios (Dn 7; Ap 13). Na cosmovisão da época, o mundo era plano e no fim do mar havia um abismo com monstros. Em Marcos, Jesus aparece sempre agindo à beira-mar: lá forma suas comunidades, prega a multidões, cura enfermidades e, finalmente, põe o mar sob controle (Mc 4.35-41). Cada evangelista cria seu cenário ideal para impactar a sua mensagem sobre Cristo.

Os “ais” contra os ricos e fartos não aparecem no sermão do monte em Mateus, que aborda a pobreza na dimensão espiritual. O tema da desigualdade social tem grande relevância na definição do ethos, do comportamento desejado dos seguidores de Jesus na comunidade lucana dos anos 90. No cântico de Maria (Lc 1.51-53) se desenvolve esse eixo da adesão aos pobres: 1. derrubou do trono os poderosos; 2. exaltou os pobres; 3. saciou os famintos; 4. despediu vazios os ricos.

Na língua grega existem duas palavras para “pobre”: penēs, que vive apenas com o necessário; e, que Lucas usa em seu sermão e significa mendigo, desprovido de qualquer sustento. Ptochos provém do verbo que significa “agachar-se” ou “esconder-se de medo ou vergonha”. Em contrapartida ao significado desse verbo, os ricos são descritos como aqueles que se “levantam” e “se exibem”, confiantes no poder de suas riquezas. Na tradição grega de Jesus, não é usado uma única vez o termo mais ameno (penēs), somente ptochos, o que faz de Jesus um porta-voz dos mendicantes miseráveis.

A consolação dos ricos é a sua riqueza, porque é duro para eles deixá-la, como no caso do jovem rico (Lc 18.18-23). A união com Jesus é o fundamento para uma vida plena. Nesse sentido, vale ressaltar que o termo bem-aventurado significa muito mais do que “feliz” (termo usado na Nova  Tradução na Linguagem de Hoje – NTLH). Significa desfrutar do favor de Deus. Ter o favor de Deus não significa não sofrer, mas ter sustento também nos momentos difíceis e saber que até nos sofrimentos Deus está presente. No texto grego usa-se a voz passiva, indicando a intervenção do próprio Deus, revelado por Jesus, em sintonia com o conceito de reino de Deus como situação onde reina o poder de Deus, a ação de Deus.

O significado da palavra “ai” na Bíblia está ligado à lamentação e dor, e também pode ter conotação de condenação ou juízo. O Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento assim define essa expressão: “É uma exclamação de dor ou de raiva e deriva de raízes que significam ‘uivar’. Empregado também para expressar desespero (1Sm 4.7), lamentação (1Rs 13.30), insatisfação (Is 1.4); dor (Jr 10.19) ou uma ameaça (Ez 16.23)” (Coenen; Brown, 2003, p. 46). Os pobres e a intervenção de Deus são temas recorrentes na literatura profética de denúncia do pecado e anúncio da graça. Ao colocar nas bem-aventuranças uma contraposição com os ais, Lucas transita do gênero sapiencial, que é típico das bem-aventuranças, para o profético, demonstrando com clareza um perfil de Jesus profeta.

O advérbio “agora” sinaliza a mudança que surge com o reino, já presente na pessoa de Cristo. Na quarta bem-aventurança há algo distinto: aparece a conjunção “quando”. Com isso se demonstra que todas as vezes que os discípulos de Jesus passarem por perseguição, devem manter a confiança alegre, e não o medo. No último ai também aparece a conjunção quando.

3. Meditação: A mudança que precisamos ser!

Em relação à transmissão dos ditos de Jesus das bem-aventuranças, percebemos que Lucas apimenta o material original a que teve acesso. Isso é muito importante para que não se perca o específico de Lucas, pois o texto de Mateus é muito mais conhecido pelas comunidades, e na pregação o “ponto de partida” dos ouvintes será o sermão do monte de Mateus, com os pobres “de espírito” e não com os pobres “de verdade”, que estão nas ruas ao redor de nossos templos.

O paradoxo é recurso comum em Lucas e indica uma ênfase desse autor: a força transformadora da mensagem de Cristo. Destacando o específico de Lucas convém aprofundar os “ais”. Os “ais” de Lucas nos transmitem a incisiva mensagem de que o projeto do reino de Deus não tolera o consumismo. O ser humano é parte da criação, uma engrenagem que deve administrar e preservar o bem da criação. No entanto, a engrenagem da humanidade é que está emperrando o bom funcionamento da criação divina e cada vez mais a está destruindo. O discurso de Jesus é um alerta para que a escala de valores seja revista, que a exploração das pessoas e da criação vão nos levar à ruína. É revolucionário trazer um discurso em que os pobres, os famintos e os que choram são bem-aventurados, são dignos perante os olhos de Deus. Os pobres de antigamente e de hoje só ouvem o discurso de que não são dignos, são desgraçados e nada vai mudar sua sorte. A fé cristã é um meio de empoderar as pessoas para uma luta pela igualdade social. E essa luta vai gerar conflitos, tanto que Jesus menciona que os que agirem de acordo com os valores do reino serão odiados e perseguidos como foram todas as pessoas engajadas pelo reino de Deus. Percebemos isso no v. 23 quando Jesus denota a gravidade da situação e remete para a vida eterna a plenitude da causa. Nosso compromisso é agora com os que sofrem e a criação ameaçada, a vitória já a temos pela cruz de Cristo, mas a plenitude da bem-aventurança será na eternidade.

No primeiro lamento de advertência (v. 24), Jesus fala para aquelas pessoas que têm riquezas e/ou são apegadas a elas. Uma palavra me chamou a atenção: consolação. Conforme a tradução de Almeida, esse termo pode ser uma chave de interpretação. É como se Jesus dissesse: “Lamento muito por vocês que são ricos e que têm encontrado nas riquezas o consolo de suas vidas”. 

Pode parecer até estranho falar de buscar consolo no atual cenário da igreja cristã, sobretudo nas inúmeras igrejas propagadoras da teologia da prosperidade. Afinal, os “profetas” do sucesso estão nos programas de TV anunciando que crente fiel não sofre, não adoece, não perde o emprego e não passa por qualquer outra dificuldade. Basta apertar a campainha e o Deus garçom vem atender seus pedidos. No entanto, precisamos constatar: somos submetidos a tantos sofrimentos e estamos tão aquém do ideal de Deus para nós, que todos, sem exceção, precisamos ser consolados. Aliás, aqueles que acham que não precisam de consolo são os que mais precisam! Quando alguém perde o emprego precisa de consolo. A experiência de procurar, como ganhar o pão de cada dia para sustentar a família e não conseguir é um corrosivo danoso para a autoestima. Quando se é vítima da violência urbana, precisa-se de consolo. Quantos casos desses conhecemos perto de nós? A violência não faz curva em nossas comunidades. Quando nos sentimos inadequados e não nos encaixamos em nenhum perfil, precisamos de consolo. Jesus deixou um alerta sobre onde estamos buscando consolo. Onde você tem buscado consolo para enfrentar as dificuldades da vida? Naquilo que você possui ou na esperança de possuir algo? Nos seus filhos? Nas drogas lícitas ou ilícitas? No sono? No trabalho duro? Nos estudos intensos? Tenha algo bem claro diante dos olhos: suas posses podem ser roubadas, seus filhos podem não realizar seus sonhos, o efeito das drogas passa e deixa um vazio ainda maior. Depois de uma tarde de sono, o mundo continuará lá. Depois de 12 horas de trabalho, seus medos ainda estarão esperando por você. Um dia você se arrependerá de ter investido tantas horas em estudo e desperdiçado a convivência com as pessoas que amam você.

Aprofundar a busca por consolo evita enveredarmos pelo caminho de que os ricos são maus apenas por serem ricos e os pobres bonzinhos apenas por serem pobres. O texto de Lucas não permite uma rotulação superficial, mas um desnudamento das intenções e ações.

4. Imagens para a prédica: Igreja junto do povo

Assim como Jesus desceu até o povo, cada qual deve descer ao contexto de sua comunidade e perceber em quais aspectos é possível reunir, mobilizar, conscientizar, empoderar.

Em muitos contextos a IECLB parece estar numa bolha, flutuando em “espaço paralelo”: ela não está no “topo do monte” (não congrega multidões nem arrecada milhões), mas ainda não chegou às baixadas. A diaconia seria uma maneira de “estourar a bolha” e viabilizar ser igreja “pé no chão”.  Enfatizando nossa dimensão diaconal, vamos descer à realidade do povo e traduzir o evangelho em ações. Quais trabalhos diaconais estão sendo realizados em seu contexto? É oportuno distinguir entre assistencialismo e diaconia, esclarecendo esse conceito teológico a partir da prática de Jesus. Nenhuma ação divulga tanto o nome e o jeito da igreja luterana como a ação diaconal.

Fazer placas com o conhecido sinal do curtir das redes sociais e espalhar pelo templo. Questionar: o que curtimos em nossa comunidade? Depois de curtir, provoque o agir! Somos rápidos em curtir e lentos em agir. Mesmo que os “ais” doam nos ouvidos e as bem-aventuranças nos questionem, é isso que abre a mente para uma ação transformada e transformadora. Podem ser confeccionadas ainda outras placas (no estilo das usadas em festas de casamento), com as seguintes frases:

• Eu ajudo.
• Eu contribuo.
• Partiu viver o sermão.
• #Jesusmedesafia.
• O sermão da baixada me levanta do sofá.
• Diaconia: eu pratico!
• Conhece? Eu te explico.
• Cada dia melhor pela fé.
• Pela fé te vejo como irmão.
• Ai de mim se não vivo o que eu digo.

5. Subsídios litúrgicos: Bem-aventurados sois!

Explorar o cântico de Maria (Lc 1.51-53): leitura bíblica, cantado (HPD 307) ou declamado, e também Jeremias 17.5-10.

Kyrie

Tem piedade, Senhor, porque buscamos consolo naquilo que é ilusório, buscamos segurança naquilo que é transitório. Tem piedade de nossa gente maltratada, explorada e marginalizada. Faze-nos ouvir tuas bem-aventuranças, encontrar motivos para não desistir e forças para lutar. Tem piedade de nossa gente enganada e manipulada, que tem bolsos cheios, consciência turva e coração congelado; faze-os ouvir teus ais para se converter, se transformar e encontrar em ti a segurança e o sossego que procuram. Tem piedade, Senhor! Bem-aventurados os que clamam e buscam por ti!
“Não é porque as coisas são difíceis que não nos arriscamos; é porque não nos arriscamos que elas se tornam difíceis.” (Sêneca)

Bibliografia

COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003.
SOUZA, Fernando Figueiredo de. Mendigos e ricos nas palavras de Jesus segundo Lucas: uma análise de Lucas 6.20-26. 2012. Tese (Mestrado em Ciências da Religião) – PUC, São Paulo, 2012.


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Autor(a): Samuel Gausmann
Âmbito: IECLB
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2018 / Volume: 43
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 50273

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